Descaminho

27.1.05

Maio de 68 e a `era dos extremos`

Nada mais irritante do que dizer que a temática do Maio de 68 está esgotada. Pelo contrário. A maioria do que se disse a respeito daquele mês-evento, até hoje, não sai de esteriótipos cínicos ou românticos - extremos que passam longe de algo minimamente calcado na realidade.

Falta discutir a fundo por que as mudanças políticas, artísticas e de costumes caminhavam tão juntas naquela época. Vivia-se o paradoxo de o cinema ser cada vez mais político e da política ser cada vez mais cinematográfica, assumindo um caráter festivo - que acabou conquistando a juventude.

As novas abordagens existencialistas, sociológicas, antropológicas e psicanalíticas que as sociedades - especialmente urbanas - ganharam nos anos 60 ainda são estudadas de forma isolada, sem vinculação com a política. Esquece-se que os mesmos jovens atores da revolução de costumes foram os que tentaram encaminhar a revolução política. Se os anos 60 foram uma década de alteração do paradigma político e de radicais mudanças comportamentais, porque continuar a estudar os dois fenômenos separadamente?

Não faz mal lembrar que a rebelião estudantil de Paris, que culminaria na paralisação do país, começou na Universidade de Nanterre com uma causa comportamental: em março, a reitoria da instituição baixou uma portaria proibindo que os rapazes visitassem mulheres em seus quartos. O reitor Pierre Grappin suspenderia as aulas e chamaria a polícia para "resolver" a situação. A Sorbonne também faria o mesmo, poucos dias depois.

O resto todo mundo já sabe: doze dias depois daquele incidente, Paris estava tomada nas ruas, com operários aderindo à causa estudantil. As reivindicações já assumiam caráter político com teor revolucionário. As pixações nos muros até hoje são lembradas. Em um mês, quase todos os 10 milhões de franceses já estavam em greve, incluindo aeroportos, redações de jornal e hospitais. Abatida com as derrotas sucessivas, a polícia saía da cena pública. No dia 28 de maio, o presidente De Gaulle desaparece do país e os estudantes declaram o que parecia ser uma utopia: a instalação da anarquia.

Depois, como também se sabe, com amplo respaldo dos militares, De Gaulle reaparece e convoca eleições gerais (inclusive para a Presidência). O presidente francês apela para o conservadorismo de cada cidadão e trabalha uma bem bolada campanha do medo contra a "revolução vermelha". De Gaulle, com pesquisas nas mãos, sabia que a maioria dos franceses tinha medo de um governo comunista de verdade. E como os estudantes ainda estavam surpresos com a potência política que a rebelião tinha conquistado, não houve tempo e união para bolar um plano mínimo de conquista do poder. Resultado: De Gaulle vence as eleições presidenciais, amplia sua maioria no parlamento e ganha capital político para reprimir qualquer manifestação popular dali em diante.

Desafio - O maio de 68 foi a mais emblemática das rebeliões do século XX por não ter seguido nenhum modelo específico de transformação da sociedade. Embora houvesse forte citação de ícones como Marx, Marcuse e Mao, a influência era múltipla e, por isso, plural e diluída. O verdadeiro modelo de revolução, acreditava-se, seria construído pelos próprios protagonistas, ou seja, pelo próprio povo.

Curiosamente, entretanto, foi essa não-preparação da revolução que ajudou a tornar a rebelião frágil. O país todo esteve em greve e do lado dos estudantes, mas, em um segundo momento, com a reação do presidente francês, não havia unidade de discurso nem de ação para conseguir barrar o "discurso do medo" bem trabalhado por De Gaulle.

É esse, imagino, um dos grandes entraves da esquerda dita revolucionária hoje: preparar uma teoria e tentar enquadrá-la na realidade (correndo o perigo de se chegar a um stalinismo) ou construir a transformação aos poucos (correndo o perigo da rebelião não se sustentar por falta de unidade).

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

A discussão começa a tomar forma. Vai espantar metade ou todos os seus leitores. Mas vai lá. Começar dos pés para a cabeça, no sentido do texto.
A esquerda e ninguém mais tem teoria, ou seja, um discurso interpretativo da realidade. Foi Lyotard que sentenciou o fim dos meta-relatos naquele livreto nos anos 80. O pós-modernismo se assenta na morte da teoria totalizante, sistêmica do mundo.
Terry Eagleton lançou um livro chamado "After theory", que li no ano passado, e aponta o vazio deixado pelo fim da teoria. Sabe o que vem no lugar? O fundamentalismo assume o espaço deixado pelos grandes relatos (marxismo, psicanálise).
Em miúdos: o pensamento pós-moderno aboliu a teleologia. A teoria não deve dizer mais aonde queremos chegar. Se você ler os livros do Tarso Genro, aparece uma idéia de socialismo na "sociedade aberta". Os liberais acham que este conceito popperiano se refere à abertura comercial de um país e bla-bla-blá. Não é: a sociedade aberta se contrói sem um "fim" previamente estabelecido.
Esse é problema discutido no Fórum de Porto Alegre. Discute-se o picadinho, na sociedade civil, mas perde a questão sistêmica.
O maio de 68 tinha um pensamento anti-sistêmico, contra o capitalismo. O problema hoje das ONGs é querer lutar contra a economia de mercado usando modelos de gestão corporativa. Não se vai a lugar algum.
Junto ao maio de 68, havia o movimento autonomista no Itália, que depois chafurdou nas Brigadas Vermelhas. Eram contra o captial e o sistema estatal. Por isso, o pensamento de um Toni Negri (um autonomista) vem sendo utilizando pelos neoliberais para falar do Império.
A recepção crítica de "Os sonhadores" está indo contra a idéia de uma leitura política. Porque é um dos efeitos do pós-maio de 68: o conservadorismo. Não se quer mais politizar, levar a intrepretação do mundo para a esfera pública. O interesse está nas revoluções técnicas da globalização, as mudanças estão no interior de grandes corporações. Mais do que nunca será preciso ler Octavio Ianni, que analisou a mundialização.
Uma das poucas conclusões é que não se chegará a lugar algum sem uma análise sistêmica do mundo.
Buru.

8:51 PM  

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