Descaminho

26.1.05

Os Sonhadores: melhor filme da mostra


Matthew conhece Isabelle logo no início do filme: filme lúdico

A mostra O Amor, a Morte e as Paixões não chegou ao fim, mas dificilmente algum dos 40 filmes da grade de programação conseguirá ser melhor do que Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci.

Bastante lúdico, cheio de citações sem ser pernóstico, Bertolucci faz em Os Sonhadores pequenos diagnósticos do maio de 68 parisiense sem prejudicar a fluência do filme. Mas, antes de espalhar certezas, levanta perguntas. E sugere uma resposta timidamente otimista ao final.

Como já se disse, Os Sonhadores se passa em 1968 em Paris, ano da rebelião estudantil profetizada por Herbert Marcuse. O filme começa mostrando o protesto de estudantes contra a demissão de Henri Langlois (criador da Cinemateca Francesa) pelo ministro da cultura do presidente Charles De Gaulle, o escritor André Malraux. É bom lembrar que a França, neste momento, vivia intensa união entre política e cinema. Um ano antes o cinema-militante de Jean-Luc Godard chegava ao auge com A Chinesa, filme que acabou antecipando de alguma forma a rebelião de 68.

É no meio do protesto da cinemateca que dois irmãos gêmeos franceses Isabelle (Eva Green) e Théo (Louis Garrel) conhecem o americano Matthew (Michael Pitt).

Os gêmeos, ali mesmo, convidam Matthew para um jantar. Depois o convencem para que ele fique uma tempora na casa deles. Matthew topa. O que se passa dentro do apartamento, então, é quase que um mundo paralelo (mas jamais desconexo) da rebelião que acontece nas ruas. A influência de alguns autores e mitos é explicitada com as mil citações do filme. Outras influências, como Lacan, Barthes, Levi-Strauss e Sartre, são facilmente identificadas pelo modelo de educação liberal dos pais dos gêmeos franceses (a cena do cheque deixado pelo pai simboliza bem).

Dentro do apartamento, o tal mundo paralelo dos três jovens é marcado por brincadeiras cinéfilas com doses de erotismo. O limite da liberdade sexual é testado o tempo todo, com desejos incestuosos, inveja, culpa e outras fantasias pautando a mente dos três personagens. Muito interessante notar o papel do americano Matthew. É ele que vai propor uma ruptura conservadora em tudo ali. Propõe uma quebra entre cinema e política, prega menos filosofia, critica o maoísmo mas, em alguns momentos, sucumbe ao desejo dos irmãos franceses.

É justamente o fato de todos os personagens do filme sucumbirem em algum momento que faz com que a construção deles seja bem feita. Não há maniqueísmos. Para usar um conceito psicanalítico em moda na nostálgica Paris dos anos 60, poderia-se dizer que Matthew assume o papel de símbolo da interdição do incesto. É ele que tenta fazer com que os dois irmãos franceses ingressem na sexualidade aceita pela cultura: renunciar ao círculo familiar para, um dia, virem a formar outra família. Resumindo, o americano funcionaria como um princípio fundador da cultura.

É por isso que é irritante ver críticos do filme dizerem que Os Sonhadores não tem nada de político. Há quem embarque em um reducionismo moralista tão grande que só consegue falar das cenas de sexo do filme. A imprensa norte-americana chegou ao absurdo de classificar o filme como "thriller erótico".

A Chinesa - Cheio de homenagens ao cinema, Bertolucci usa A Chinesa e outros filmes de Godard em diversos momentos como parâmetro para sua obra. Enquanto Bertolucci analisa 1968 em 2004, Godard foi falar da mesma época em 1967, um ano antes. E era A Chinesa o filme preferido de dez entre dez militantes políticos parisienses em maio de 68. Para relembrar: em A Chinesa cinco jovens decidem se enfurnar em um apartamento (muito parecido com o de Os Sonhadores) para aprender a "implantar" a revolução socialista na França (o maoísmo é o símbolo político mais presente nos filmes de Bertolucci e Godard; e, no quarto de Theo, em Os Sonhadores, há um cartaz imenso de A Chinesa).

Outro exemplo de homenagem de Bertolucci: a seqüência em que os três protagonistas do filme repetem a corrida de Anna Karina, Sami Frey e Claude Brasseur pelo Louvre é uma homenagem plasticamente muito bonita a Bande À Part (filme de 1964 nunca exibido no Brasil), do mesmo Godard. O último tango em Paris, do próprio Bertolucci, também é uma referência.

A forma como os personagens se relacionam no apartamento é também uma referência (ou uma continuidade) de Bertolucci a seus próprios filmes. Les Enfants Terribles do artista-militante multimídia Jean Cocteau está também ali presente. Susan Sontag e Georges Bataille também são citados.

O que interessa é que o diretor propõe uma nova abordagem do maio de 68. Não só enfatizando a revolução de costumes, que foi acelerada ali. As questões da revolução política pequeno-burguesa que quase aconteceu também são expostos. O sangue no rosto de Isabelle é talvez o momento que melhor exemplifica essa recusa de Bertolucci em dissociar política e comportamento.

Mas Bertolucci tem os pés no chão. Conversa com 1968 sem se esquecer de que o filme será visto por telespectadores de 2004/2005. Complementa A Chinesa, sim, mas não perde a noção histórica de que é um filme que analisa 1968 em retrospectiva. Nesse ponto cresce a importância de Matthew. É dele a tarefa de não deixar que Os Sonhadores vire um filme-panfleto. Bertolucci usa o personagem americano para lembrar os revolucionários sobreviventes de hoje que colocar o maio de 68 no pedestal romântico só atrasa ainda mais a revolução que eles esperam (se é que algum dia ela acontecerá).

É Matthew também o elemento-chave para estabelecer uma crítica mútua e bem humorada entre europeus e americanos. Isso fica claro na cena do café da manhã, quando Matthew interrompe o excesso de filosofia do pai (escritor francês) para partir para um outro excesso: de futilidades.

O diretor italiano nos expõe um conflito político amplo. Sugiro uma pergunta das milhares que podem sair do filme: Maio de 68 teria formado uma geração criadora de valores ou mera reprodutora deles? É esse um dos debates interditados dos anos 60 que, agora, Bertolucci retoma.

10 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Eduardo seu Blog é muito bacana. É um dos mais bem feitos que tenho visto. Parabéns.

Carlos Willian

11:10 AM  
Anonymous Anônimo said...

Sabe qual é, gauche, uma ficção histórica sempre fala do presente. O mesmo vale para o trabalho do historiador. O cara escolhe com interesses de hoje os temas, os personagens, os eventos, os locais para falar da atualidade. São representações que orientam o imaginário para o futuro. Caso contrário, vira o que Jameson chamou de "cinema nostalgia", uma recriação por mera recriação. Nesse sentido, Bertolucci não está falando de 1968, mas sim de hoje. Tempos de conservação e de repúdio à mudança, à transformação mínima. Época de despolitização em que os fashions weeks recebem uma cobertura da mídia mais isenta e objetiva do que o Fórum Social de Porto Alegre. Sinal dos tempos, diriam os cínicos, niilistas e antropofágicos.
As barricadas de Paris dos anos 60 são os protestos de Genova, salvo engano, em 2000. Movimento antgi-globalização. É a interpretação sugerida por Bertolucci. O leitor ou espectador não é um ser inerte, ele preenche os vazios colocados por uma obra de arte. Afinal, Bernardo não é um nostálgico. Por isso, o desconforto com o filme. Falar de política e de revolução em tempos que só vêem a revolução no novo design de Armani e tuti quanti, no fashion week do dia. Um absurdo. Daí, os americanos falarem em "thriller erótico". Mas, como ressalta Terry Eagleton, é a leitura política que faz necessária. Ainda mais num filme que joga os personagens no meio do redemoinho, no meio da rua. Mas que raio de política fala o filme de Bertolucci?
Theo e Isabelle encarnam o espírito de Foucault. É o poder que penetra no corpo. A revoluação, a subversão entra os poros da pele e começa a girar lá dentro. E além disso, o mundo atravessa a tela de cinema, como lembra o tolo Mathew. As imagens de vários filmes passam a ser as lentes com que aquele trio enxerga o mundo. De repente, os personagens da tela são incorporados. Em certo ponto, Isabelle vira a Vênus de Milo. A arte (alta e baixa) éo filtro da percepção, está no corpo de cada um dos três personagens. A partir deste ponto, eles se fecham num ambiente privado e começa a libertação, a revolução corporal, a "transgressão de limites" que é a própria definição do fictício, das narrativas de mentirinha que moldam o imaginário.
Mas o poder não pode se restringir ao corpo. E Bertolucci mostra isso: Isabelle ensaia uma tentativa de suicídio na cena da cabana instalada na sala. Ou seja, testar os limites comporais, se a revolução ficar apenas no sexo, tem o destino da morte. Quanto mais se afundar na busca do prazer absoluto, mais próximos estamos da extinção. A revolução na esfera da vida privada leva à morte. Acho que o diretor está falando de hoje, tempos de culto ao corpo e ao consumo. Mas uma pedra invade a sala e Isabelle, salvo engano, diz que "a rua entrou pela janela". Os personagens sentem que não podem ficar apenas fechados, testando as revoluções corporais e chega a hora de tomar posição, trair a classe social. Neste instante, entra Sartre.
Foi Sartre o "Sócrates" de maio de 1968. Quem será esta figura no começo do século XXI? Bourdieu com seus escritos contra a globalização? Robert Kurz vendo o mundo extinto do trabalho? Toni Negri encantado com o poder das "multidões" nos protestos de Gênova? De repente, uma pedra invade dia-a-dia nossas casas e insistimos em ignorar. O que Bertolucci mostra é a tomada de posiçào de Theo e Isabelle que mergulham na multidão da esfera pública, partindo se necessário para a violência. Para quê? Ficar na revolução do indivíduo é a morte. Tampouco se pode contar com o norte-americano Mathew, que só pensa em fugir daquele espaço irracional no meio da rua. A racionalidade, o empirismo, exigem o bom senso.
Não se pode contar com os norte-americanos, como Mathew, que se preocupam com a racionalidade produtiva, a eficiência, o equilíbrio das formas de isqueiro com os desenhos de uma toalha de mesa (!). É o bom senso inútil. Mas será que Bertolucci não estaria falando de lugares como o Brasil e de pessoas como os brasileiros também? Ih, cuidado, acabou de entrar uma pedra pela minha janela.
Buru.

11:16 AM  
Anonymous Anônimo said...

Para mim, a melhor parábola do filme entre política e sexo é que ambos os campos são verificadores da auto-afirmação no no mundo. Estudantes ou moradores de um apartamento cinéfilo têm a necessidade de se exibir. 1968 pulsa no filme o tempo todo. Giordano, vá mesmo assistir. O filme é inesquecível.
beijo da isabela arantes

5:00 PM  
Anonymous Anônimo said...

E olha que não é o melhor Bertolucci sobre política. O filme "1900" é a obra-chave dele quanto às interpretações do mundo. Quanto à política e ao erotismo, imbatível foi o Flaubert do romance "Educação sentimental", que trata de outras barricadas em Paris, as de 1848. Essas as verdadeiras barricadas que acabaram com as esperanças de transformação. Depois disso só veio a radicalização dos conservadores. O pós-1968 só repetiu o que ocorrera 120 anos. Pode-se falar que Theo e Isabelle, em "Os sonhadores", vivem sua educação sentimetal.
Buru.

5:20 PM  
Blogger Eduardo Horácio said...

Reproduzo, abaixo, as primeiras frases de Os Sonhadores, narradas em off pelo personagem Matthew (Michael Pitt).

. . . . . . . . .

A primeira vez em que vi um filme na Cinemateca Francesa, pensei que só os franceses podiam ter um cinema num palácio. O filme era "Shock Corridor" de Sam Fuller's. Suas imagens eram muito poderosas, era como se eu estivesse sendo hipnotizado.

Eu tinha 20 anos de idade. Era final dos anos 60. Tinha ido para Paris por um ano para estudar francês. Aonde aprendi de verdade. Me tornei um membro de uma espécie de maçonaria. A maçonaria dos cinéfilos. É como chamávamos os "fanáticos por cinema".

Eu era um dos insaciáveis. Dos que sempre ficavam nas primeiras filas. Porque nos sentávamos tão perto? Provavelmente porque queríamos ser os primeiros a ver as imagens, quando elas estavam ainda novas, frescas, antes que saltassem para as cercas das filas seguintes.

Queríamos ver antes de se espalharem de fila em fila, de espectador em espectador, até que se esgotassem, em segunda mão, do tamanho de um selo, voltando para a cabine do projetista.

Provavelmente a tela de projeção não fosse nada além de uma tela de projeção... que nos protegia do resto do mundo. Mas houve uma tarde na primavera de 1968, quando o mundo finalmente atravessou a tela de projeção.

5:15 AM  
Anonymous Anônimo said...

O personagem Mathew viu o mundo atrvessar a tela de cinema e...optou pela vida privada no final do filme. Tomou uma posição e mostrou que não estava entendendo patavinas do que ocorria naquele momento. Tampouco comprenderia o que acontece hoje. Por sinal, seria ele o ancestral do filho de Remy no filme "As invasões bárbaras". É o bom senso inútil, ilustrado, bem brasileiro também, que encaixa o mundo em formas geométricas. Fico com Theo que assistiu na mesa às teorias do isqueiro e, com olhar de tédio, apenas bateu as cinzas do cigarro. Well, certa foi Isabelle que fica com o irmão e mandou Mathew passear, de preferência de volta aos Estados Unidos.
Buru.

12:54 PM  
Anonymous Anônimo said...

Eduardo, ontem vi vc no cinema... e vi o qto EU gosto pouco de cinema. Vi que vc tava lá, no chão, vendo de novo Os Sonhadores... e que lá permaneceu até o fim... sozinho. Vc sim gosta MUITO. E, com este blogue, prova que também ENTENDE muito, muito, muitão. Ha, vc naum me conhece, mas eu leio isso aki todo santo dia. Tanto q fui ver os sonhadores depois de ler seu texto aki. E valeu a pena... Ha se valeu.
Beeeeijo - Rafaela

4:31 PM  
Anonymous Anônimo said...

Uau! Eu tinha gostado, agora eu adorei. Que bom que sou sua amiga (*orgulhosa*)! Mas fala, foi a cinefilia do filme que te laçou o lado direito do cérebro, não foi? -Elisa-

1:26 AM  
Blogger Eduardo Horácio said...

Este comentário foi removido por um administrador do blog.

4:31 AM  
Blogger Eduardo Horácio said...

Elisa, a cinefilia é o lado mais lúdico do filme. Não tinha como não se emocionar. A forma como os três jovens levam o cinema a sério é tocante. Já o lado direito do cérebro recebeu doses extras de endorfina com o maio de 68. Não há mês-evento tão bonito e efêmero como aquele.

4:42 AM  

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