Descaminho

25.9.04

Pour Elise, Techno e Manson



Em janeiro deste ano participei de um debate sobre o filme Elefante, que entrou em cartaz no circuito comercial ontem em Goiânia.

À época, refém das versões dos jornais e da polícia norte-americana, eu levantei uma polêmica sobre o fato de o diretor Gus Van Sant ter mudado o gosto musical real da dupla de assassinos (Marilyn Manson) por um gosto imaginário (Beethoven). Não que a música de Manson seja ruim. A dúvida é se aquilo não tornaria suave demais a imagem dos assassinos, especialmente pela cena em que Eric toca Pour Elise por vários minutos.

Mesmo correndo o risco de criar uma polêmica típica de stalinistas, fiz a provocação. Bom, três meses depois (em 20 de abril deste ano), a revista Slate publicou um relatório final do FBI que derrubou alguns dos mitos criados ou reproduzidos no mundo todo.

O primeiro dos mitos derrubados é que eles não gostavam de Marilyn Manson. Eles o "odiavam" e apreciavam, segundo palavras textuais do relatório do FBI, "techno, tipo Prodigy, Orbital"
Eles também não eram "loosers" - participavam de baladas com os amigos todo fim de semana.

A seguir, alguns detalhes do filme... (preferi fragmentar o texto para faciliar a leitura aqui no blog - e para não virar um imenso tijolo)


Fatos reais

Duas versões para o nome do filme: a primeira é que vem de uma lenda indiana em que três cegos examinaram um elefante e tiveram de descrevê-lo. Um apalpou a calda, outro as trombas e o último apalpou as pernas. Cada um descreveu uma coisa diferente. Ninguém teve a visão do todo. É um filme de várias visões parciais, sem ninguém tendo uma visão sobre o todo

Outra explicação é que as circunstâncias de um evento são tão fáceis de ignorar quanto um elefante no meio de uma sala de estar

O diretor tentou reconstituir ao máximo o que aconteceu em Columbine no dia 20 de abril de 1999. O boné pra trás, as roupas usadas, os desenhos feitos, a disposição do quarto dele, o jogo Doom...

O massacre foi realizado no dia do aniversário de 110 anos de Hitler e a senha deles para acesso ao e-mail da American On-line era a data original em que Hitler nasceu (200989)

O curioso é um detalhe da carta que Eric deixa em casa, antes de partir: “planned to escape the United States and go live on an island or to hijack an airplane and crash it into the heart of New York City”. O relatório do FBI depois confirmou que as palavras eram autênticas

A cena da batida do carro no início do filme é recorrente nos filmes de Van Sant. Em Drugstore Cowboys há uma 'quase' batida

Um dos melhores momentos do filme é aquele em que se discute a possibilidade de reconhecer gays nas ruas. A câmara filma uma pessoa de cada vez. Para mostrar que, em um debate, todo mundo quer falar. Mas ninguém quer ouvir. É como a mania dos blogs: hoje o Brasil já tem 800 mil blogs para apenas 3 milhões de leitores. Caminhamos, quase, para uma comunicação unilateral (sim, rolou uma auto-crítica aqui)

Na linha do biografismo

O John é exageradamente loiro — até assusta. E o diretor do filme é dono de uma banda metal chamada Kill All Blondies

O diretor vive comercialmente também de criar jogos de videogame violentos

Por falar em games, já ouviu falar de Counter-strike? Veja o filme e jogue o jogo. Dá no mesmo

O diretor, perguntado sobre o porquê dos estudantes não matavam colegas nos anos 60, respondeu que os anos 60 eram piores porque eram os policiais dos EUA que matavam estudantes de 16 anos


Estrutura

Os diálogos são improvisados. O roteiro é improvisado. Pelo menos é o que diz o diretor...

É um filme que busca o neo-realismo italiano, já que os atores foram buscados nas próprias comunidades onde vivem

Só que, junto com a encenação naturalista, há uma construção narrativa fragmentária

Seria uma espécie de Cidade de Deus em slow-motion? Narrativa fragmentária, atores buscados na comunidade onde vivem, grande tragédia...

Os primeiros nomes dos personagens são os mesmos dos atores que integram o filme

Segundo o diretor, é melhor trabalhar com não-atores porque eles, não-atores, não estão viciados em dramatizar tudo, em transformar tudo em melodrama

O diretor é reconhecido por sabe filmar os jovens deturpando o mínimo possível o universo deles. Usa uma linguagem de documentário

Em nenhum momento a narrativa se afasta do ponto de vista dos adolescentes. Adultos são raros e, quando mostrados, são sob a ótica dos adolescentes.

O diretor garante não ter usado luzes. É filmado sem luzes. Fotografia limpa. Feita de manhã, para dar mais qualidade.

Quando sai de um ambiente escuro para um claro e de um claro para escuro, o diretor pára e recomeça a gravação rapidamente, sem nem que o espectador perceba.

O céu, em outros filmes, muitas vezes funciona como um ponto morto no roteiro.

Em Elefante, as nuvens parecem clichês — e de, fato, tem algo mais batido do que colocar um tempo nublado para avisar que algo de ruim vai acontecer?

Talvez, mais do que metáfora, o céu é o único demarcador de tempo do filme. O espaço de tempo do filme é curto. É apenas mostrado sob vários pontos de vista. E as nuvens anunciam o que está por vir

Gus Van Sant tem uma obsessão com o céu e com as nuvens — desde o primeiro filme Drugstore Cowboys (de 1989) ou Garotos de programa (de 1991)

Observe: sempre há câmera-lenta nos momentos de intersecção dos pontos de vista

O filme parece durar mais do que 80 minutos, principalmente para o olhar acostumado com o padrão americano de cenas rápidas

É interessante porque mantém a expectativa da platéia sob controle, sem buscar uma catarse, uma excitação violenta, que é o que todos esperam

Mas a platéia, geralmente, fica tensa pois sabe que a qualquer momento o tiroteio pode começar. O tempo é fluido, o único aviso são as nuvens no céu

O diretor sugere que não há uma idéia coerente do que levou eles a cometerem aquela tragédia

O filme é minimalista. Mas não é simplista: não é fácil ali ver razões ou explicações para tudo aquilo


Influência de Kubrick

Quando Stanley Kubrick fez filme 2001 – uma odisséia no espaço, Kubrick disse que se inspirava no cinema russo.

Quando Gus Van Sant fez Elefante, ele diz que se inspirou no cinema húngaro.
Ele filma no formato 1:33-por-1, que é o preferido de Kubrick.

Alex também é o nome do anti-herói do filme Laranja mecânica, do Kubrick. Também Alex é o nome do assassino do massacre de verdade.

O Grande Golpe (The Killing, EUA, 1956), de Kubrick, mostra mesmas cenas sob pontos de vista diferentes. E, em O Grande Golpe, há um tiroteio em que muitos morrem.

Outra semelhança com o Grande Golpe é que Kubrick permite que haja muito espaço ‘vazio’ em torno dos seus personagens.

Em O Iluminado (The Shining, 1980), há um homem que atravessa um local de alto perigo sem ter medo da morte e é assassinado brutalmente. Explicaria um pouco do porquê Gus Van Sant colocar o Benny (negro de camisa amarela) ali naquela situação?

Kubrick dizia que o importante de um filme não era seu desfecho, mas sim seu ‘ritual’ e seu ‘ritmo’. “Um filme bom pode até não ter roteiro, mas precisa de um ritual”, dizia ele. Esse filme não tem roteiro. Tem um ritual?

Ok, Gus Van Sant não é Stanley Kubrick. Eu também sei disso.

1 Comments:

Blogger Carina Dourado said...

sem falar que o alex, do laranja mecânica, adora beethoven.

9:35 PM  

Postar um comentário

<< Home