Matthew conhece Isabelle logo no início do filme: filme lúdico
A mostra
O Amor, a Morte e as Paixões não chegou ao fim, mas dificilmente algum dos 40 filmes da grade de programação conseguirá ser melhor do que
Os Sonhadores, de
Bernardo Bertolucci.
Bastante lúdico, cheio de citações sem ser pernóstico, Bertolucci faz em
Os Sonhadores pequenos diagnósticos do maio de 68 parisiense sem prejudicar a fluência do filme. Mas, antes de espalhar certezas, levanta perguntas. E sugere uma resposta timidamente otimista ao final.
Como já se disse,
Os Sonhadores se passa em 1968 em Paris, ano da rebelião estudantil profetizada por
Herbert Marcuse. O filme começa mostrando o protesto de estudantes contra a demissão de
Henri Langlois (criador da Cinemateca Francesa) pelo ministro da cultura do presidente Charles De Gaulle, o escritor
André Malraux. É bom lembrar que a França, neste momento, vivia intensa união entre política e cinema. Um ano antes o cinema-militante de
Jean-Luc Godard chegava ao auge com
A Chinesa, filme que acabou antecipando de alguma forma a rebelião de 68.
É no meio do protesto da cinemateca que dois irmãos gêmeos franceses Isabelle (Eva Green) e Théo (Louis Garrel) conhecem o americano Matthew (Michael Pitt).
Os gêmeos, ali mesmo, convidam Matthew para um jantar. Depois o convencem para que ele fique uma tempora na casa deles. Matthew topa. O que se passa dentro do apartamento, então, é quase que um mundo paralelo (mas jamais desconexo) da rebelião que acontece nas ruas. A influência de alguns autores e mitos é explicitada com as mil citações do filme. Outras influências, como
Lacan,
Barthes,
Levi-Strauss e
Sartre, são facilmente identificadas pelo modelo de educação liberal dos pais dos gêmeos franceses (a cena do cheque deixado pelo pai simboliza bem).
Dentro do apartamento, o tal mundo paralelo dos três jovens é marcado por brincadeiras cinéfilas com doses de erotismo. O limite da liberdade sexual é testado o tempo todo, com desejos incestuosos, inveja, culpa e outras fantasias pautando a mente dos três personagens. Muito interessante notar o papel do americano Matthew. É ele que vai propor uma ruptura conservadora em tudo ali. Propõe uma quebra entre cinema e política, prega menos filosofia, critica o maoísmo mas, em alguns momentos, sucumbe ao desejo dos irmãos franceses.
É justamente o fato de todos os personagens do filme sucumbirem em algum momento que faz com que a construção deles seja bem feita. Não há maniqueísmos. Para usar um conceito psicanalítico em moda na nostálgica Paris dos anos 60, poderia-se dizer que Matthew assume o papel de símbolo da interdição do incesto. É ele que tenta fazer com que os dois irmãos franceses ingressem na sexualidade aceita pela cultura: renunciar ao círculo familiar para, um dia, virem a formar outra família. Resumindo, o americano funcionaria como um princípio fundador da cultura.
É por isso que é irritante ver críticos do filme dizerem que
Os Sonhadores não tem nada de político. Há quem embarque em um reducionismo moralista tão grande que só consegue falar das cenas de sexo do filme. A imprensa norte-americana chegou ao absurdo de classificar o filme como "thriller erótico".
A Chinesa - Cheio de homenagens ao cinema, Bertolucci usa
A Chinesa e outros filmes de Godard em diversos momentos como parâmetro para sua obra. Enquanto Bertolucci analisa 1968 em 2004, Godard foi falar da mesma época em 1967, um ano antes. E era
A Chinesa o filme preferido de dez entre dez militantes políticos parisienses em maio de 68. Para relembrar: em
A Chinesa cinco jovens decidem se enfurnar em um apartamento (muito parecido com o de
Os Sonhadores) para aprender a "implantar" a revolução socialista na França (o maoísmo é o símbolo político mais presente nos filmes de Bertolucci e Godard; e, no quarto de Theo, em
Os Sonhadores, há um cartaz imenso de
A Chinesa).
Outro exemplo de homenagem de Bertolucci: a seqüência em que os três protagonistas do filme repetem a corrida de Anna Karina, Sami Frey e Claude Brasseur pelo Louvre é uma homenagem plasticamente muito bonita a
Bande À Part (filme de 1964 nunca exibido no Brasil), do mesmo Godard.
O último tango em Paris, do próprio Bertolucci, também é uma referência.
A forma como os personagens se relacionam no apartamento é também uma referência (ou uma continuidade) de Bertolucci a seus próprios filmes.
Les Enfants Terribles do artista-militante multimídia Jean Cocteau está também ali presente.
Susan Sontag e
Georges Bataille também são citados.
O que interessa é que o diretor propõe uma nova abordagem do maio de 68. Não só enfatizando a revolução de costumes, que foi acelerada ali. As questões da revolução política pequeno-burguesa que quase aconteceu também são expostos. O sangue no rosto de Isabelle é talvez o momento que melhor exemplifica essa recusa de Bertolucci em dissociar política e comportamento.
Mas Bertolucci tem os pés no chão. Conversa com 1968 sem se esquecer de que o filme será visto por telespectadores de 2004/2005. Complementa
A Chinesa, sim, mas não perde a noção histórica de que é um filme que analisa 1968 em retrospectiva. Nesse ponto cresce a importância de Matthew. É dele a tarefa de não deixar que
Os Sonhadores vire um filme-panfleto. Bertolucci usa o personagem americano para lembrar os revolucionários sobreviventes de hoje que colocar o maio de 68 no pedestal romântico só atrasa ainda mais a revolução que eles esperam (se é que algum dia ela acontecerá).
É Matthew também o elemento-chave para estabelecer uma crítica mútua e bem humorada entre europeus e americanos. Isso fica claro na cena do café da manhã, quando Matthew interrompe o excesso de filosofia do pai (escritor francês) para partir para um outro excesso: de futilidades.
O diretor italiano nos expõe um conflito político amplo. Sugiro uma pergunta das milhares que podem sair do filme: Maio de 68 teria formado uma geração criadora de valores ou mera reprodutora deles? É esse um dos debates interditados dos anos 60 que, agora, Bertolucci retoma.